terça-feira, 19 de novembro de 2013

Amélia.



Antes de colocar o pé direito no chão, Amélia projetava seus diversos pensamentos positivos sobre o dia que se iniciara. O rosto amassado ia embora com a água fria do chuveiro e dava espaço a um ânimo renovado. Selecionava a melhor roupa e seguia para seu café da manhã reforçado, e era do conhecimento de todos que ela tinha esta refeição como a principal do dia e por isso talvez se atrasasse um pouco para o serviço. Trabalhara na equipe de redação de um jornal local, e era sempre gentil e sorridente. Sua competência profissional era expressa nas bem elaboradas matérias que eram entregues dentro do prazo estipulado. Um comportamento tomado pela mescla sutil de venustidade e mistério a tornaram uma mulher instigante para todos em seu antro de trabalho. Logo a admiração e curiosidade pela vida de Amélia, trouxeram à tona uma onda de histórias sobre sua magnífica rotina. Todos os dias de manhã ela toma café com um belo homem que a envolve com um olhar apaixonado, segundo a secretária. Seu apartamento é abarrotado de bons livros, decorado com bom gosto e possui uma varanda com vista deslumbrante. Em dias de folga ela seleciona um bom vinho e dança, dança fora do ritmo e ninguém se importa, pois não há movimentos mais graciosos e sensuais. Amélia aventurou-se em “mochilões” por cidades magníficas. O olhar dessa mulher envolto pela fumaça do seu cigarro já foi capaz de seduzir sete homens de uma só vez, proferia o cronista. Talvez por detrás de seus mistérios houvesse uma mulher realizada, que seu espírito aventureiro ocasionalmente transbordasse em taças de vinho requintado, que em seus jogos madrugais ela se embalasse sensualmente pelo apartamento. Talvez tais boatos fossem eloquentemente suficientes para serem reais. Talvez, só talvez... Antes de colocar os pés no chão, Amélia acorda com o irritante barulho do despertador e, ainda estarrecida com o susto matinal, não consegue pensar em mais nada a não ser em retomar ao sono. Levanta da cama e tropeça em alguns livros espalhados pela casa, toda aquela desordem já lhe era familiar. O detestável banho gelado serve como um lembrete de que mais uma vez esquecera-se de pagar a conta de energia. Enquanto tenta esconder as olheiras, provenientes de mais uma massacrante madrugada em claro escrevendo para o jornal, ela engole um café frio e amargo. Mais uma vez chegara atrasada ao trabalho, o trânsito tumultuado é um teste diário à paciência. Antes de sair do carro, respira fundo e se lembra de que é hora de colocar o sorriso no rosto pra evitar que os demais a tratem com indiferença ou algum sentimento inferior. O romantismo na vida de Amélia nunca saíra do plano ideal, tal como na estética literária. Alguns vários goles de vinho acompanhados de uns bons tragos no seu cigarro eram a sua alforria ao fim do dia, ainda assim não a poupavam das longas madrugadas em claro a trabalho. Há anos não viaja, há semanas que seu apartamento está em completo caos, há meses que ela não seduz e não é seduzida. Uma vida dedicada a um personagem paralelo baseado nas novelas fúteis da tevê. A boa imagem já lhe soava como um filme clichê que irrita, mas não deixa de ser conveniente. Ela de fato dançava, entre um passo e outro, desviando de alguns livros e segurando o corpo exausto. Ela dançava, e sua imagem era a parceira inconveniente que pisa em seus pés e sorri fazendo charme enquanto ela sente dor 

Ana Paula Akino

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Alpinista de emoções

 
Vocês já repararam naquelas fotos de alpinistas que aparecem nos jornais?
Eles estão lá em cima, metros e metros além das nossas cabeças, sorrindo pelo seu triunfo, com uma bandeira de algum país tremulando lá atrás na imensidão azul do céu, mais alto que qualquer ser humano um dia já conseguiu chegar, mais próximos dos deuses. Eles sorriem felizes pra câmera, querem e vão sair na fotografia com pose de heróis, vão estampar capas de jornais e revistas, histórias vão ser contadas para suas futuras gerações, seus netos terão orgulho dos feitos dos seus avós e quando questionado sobre, vão mostrar a fotografia do grupo de alpinistas corajosos e sorridentes no topo do mundo.
O que ninguém nunca vai se perguntar é como eles conseguiram chegar até ali, o frio, a fome, o cansaço que passaram para chegar ao topo do mundo, para conseguirem tirar a fotografia. Não tiram fotos durante o trajeto. Porque quem quer lembrar do resto? Ninguém vai se interessar nos dias de treino e esforço para suportar a caminhada, do peso que se levava nas costas, não é interessante, não vai estar nos jornais, ninguém se interessa pelo processo todos se atentam para o resultado.
A subida cruel, a dor e a angustia de se esforçar mais, ninguém tira foto disso. Ninguém quer lembrar disso. Só queremos lembrar a vista do pico, o momento de tirar o fôlego, no topo do mundo é isso que nos mantém escalando. Ninguém quer se lembrar da dor da subida, nem ao menos você vai se lembrar depois que estiver lá em cima, ninguém vai se importar com sua escalada a menos que você tenha uma foto sorridente no topo do mundo.


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Não muda mais.


Já tive que ir a missa obrigado, já tentei ser um homem casado
Já aprendi a fingir meu sorriso, já fui sincero e já tive juízo
Já troquei de lugar minha cama, já fiz comédia, eu já fiz drama
Já ouvi cada voz que me chama, eu já fui bom e já tive má fama

Já fui ético, antipático, fui poético, fui fanático
Fui apático, fui metódico, sem vergonha, fui caótico
Eu já li paulo coelho, eu já escutei tudo que era conselho
Eu já preguei o evangelho, cheguei a achar que eu era velho

Já fiz tanta coisa que nem me lembro do que eu era contra ou fui a favor
O que me dava prazer, hoje só me dá dor
Nunca aprendi o que é o amor

E ouvi uma voz, que diz: "não há razão"
Você sempre mudando já, não muda mais
E já que estou cada vez mais igual
Não sei o que fazer comigo

Já chorei de tanta mágoa, já fiz tempestade em copo d'água
Já tentei a sorte na gringa, já aprendi que não tenho ginga
Eu já votei em tucano, já fui ovo lacto vegetariano
Insano, já fui santo e profano
Fiz na sua frente e por baixo dos pano

Já estudei teologia e não creio mais naquilo em que cria
Já sofri de claustrofobia, de teimosia e cleptomania
Já provei, já fumei, já tomei, já deixei, assinei, viajei, já peguei
Já sofri, já iludi, já fugi, já assumi, fui e voltei, afirmei e menti

Já amei tanta menina santa, descobri depois que era tudo sacana
Já bebi mais do que devia, quase acabei com a minha vida
Já sonhei estar ao seu lado, hoje não mantenho nenhum contato
Já sorri, já chorei, já fui embora e voltei
Conheci ruivas, morenas e loiras, fiz boas e más escolhas
Eu já quis me declarar, não fiz por medo de você não escutar
Já escutei muitas declarações, parti muitos corações
Isso tudo por você não estar ao meu lado, tomei muitos caminhos errados

Opinei e me equivoquei, nunca assumi pra ninguém que errei
Sem diploma, nem salário, já fui sócio majoritário
Já escrevi tanto nome no braço, eu já preenchi tudo que era espaço

Fui psicólogo, fui astrólogo, já fui leigo, fui enólogo
Fui alcoólatra, fui atleta, fui obeso e já fiz dieta
Já cuspi e mandei pro caralho, o lugar onde hoje eu trabalho

E com toda essa falsidade, minhas mentiras já são verdades
Já tive de tudo o que queria, e já me contentei com mixaria.

domingo, 3 de novembro de 2013

The Unwinding Cable Car

Tudo passa.
Chuva passa.
Tempestade passa.
Até furacão passa.
Difícil é saber o que sobra.
Difícil é saber quem sobra.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Brancas, sempre brancas

Meias

Meias verdades
Meias vontades
Meias saudades

Viver pela metade é ilusão
Tire suas meias 
Ponha o pé no chão.