domingo, 13 de abril de 2014

O Demônio de 73'





Você também me daria razão se fosse submetido a série de desgostos que minha persona foi. Não que isso justifique o que eu fiz, de maneira alguma, sei que o que fiz foi cruel e como vários jornais da região estamparam em suas manchetes foi diabólico, algo que somente uma besta vindo dos mais profundos confins do inferno poderia ser capaz de realizar, fui chamado de demônio de 1973 conhecido em toda a costa oeste do país. Mas sei que fariam o mesmo, sei que sentiram o mesmo que senti, eu sei que sim, por favor, não se espantem.
Agora a cada passo que dou neste corredor gelado estou mais próximo de encontrar o meu fim, de mãos e pés algemados estou caminhando pra encontrar seja lá o que me reserva no outro plano. Isto é um relato do prisioneiro número 17, sentenciado a morte pelo motivo mais obscuro e perverso já visto nos 132 anos de existência da prisão federal de Kschinner's Land.
A situação que me vejo agora é muito diferente da que planejava eu e meus companheiros de partido a alguns meses atrás, comemorávamos a indicação do meu nome pelo partido para a disputada do Senado, a camisa de força bem atada que me faz perder a sensibilidade das mãos que estou trajando agora, não lembra em nada os trajes italianos que comprava aos montes todos os meses.
Para entenderem os motivos os quais me encontro nessa lastimável situação devo lembrá-los que não me julguem como toda sociedade fez ao saber de meus feitos, não cuspa na minha face como o juiz teve o prazer de fazer quando minha sentença foi proferida, simplesmente procure entender que a mal esta dentro de cada um de nós e que basta alguns segundos de desatenção ele vai escorrer pelo seu corpo e tomar posse de sua alma antes que perceba.
Era verão de 1973, um calor como nunca se viu assolava a costa leste do país, as crianças brincavam na rua jogando água umas nas outras com a mangueira que seus pais orgulhosos lavavam seus caros volkwagen's novos, sentado na minha varanda sentia o vento quente bater no meu rosto e de olhos semicerrados contemplava todo aquele retrato de vizinhança feliz.
Podia sentir o cheiro da carne assada com molho de tomate que minha esposa preparava com tanto carinho na cozinha nos fundos da casa, ela era uma dona de casa dedicada e preparava com empenho os pratos que ia servir no dia seguinte na feira da boa vizinhança, ao longe avistava minha filha Elizabeth pulando alegremente nas poças que se formavam, era Novembro ainda me lembro.
Mais tarde naquele mesmo dia após fumar meu charuto cubano sentado na poltrona da sala de estar foi que tudo começou a acontecer no noticiário desta noite um compilado de imagens terríveis de pessoas desabrigadas de várias partes do país, idosos literalmente morrendo de calor em nos asilos do Estado, troco pro noticiário do canal concorrente e agora relatavam sobre a décima vítima de um maníaco sexual a solta pelo país, do alto do seu sensacionalismo os reportes não pouparam as imagens dos corpos nus violentados e sem vida descartados como uma embalagem vazia na margem de um rio qualquer.
Vocês já devem ter se sentido assim, ao menos alguma vez na vida, ao menos por alguma fração de segundo, mesmo a pessoa mais feliz da face dessa terra já deve ter se sentido assim, aquele vazio frio que penetra o peito como uma faca afiada que espeta o coração, e na sua mente ao menos alguma vez deve ter lhe ocorrido essa pergunta; “Qual o motivo disso tudo?”.
Impossível um humano nunca se questionar sobre o sentido real de sua vida, mesmo sendo o religioso mais fervoroso do mundo, ao menos alguma vez ele já deve ter se questionado sobre a existência (ou não) divina. Somos todos feitos de carne, ossos e dúvidas, e para algumas pessoas a alma é um imenso vazio e esse vazio sempre pede algo para preenchê-lo, algumas pessoas encontram isso na Igreja, outras tantas no amor, algumas passam suas vidas procurando algo que lhes saciem, mas no fim nunca ás encontra, eu sei que você já se sentiu assim, eu sei que um dia você ainda vai sentir esse vazio outra vez.
É diabolicamente engraçado como basta alguns minutos de reflexão sobre a nossa ínfima existência para que qualquer pessoa dotada de senso crítico compreender o quão insignificante é na imensidão do universo e assim abrir a jaula do diabo que existe em sua alma.
Caminhei para a cozinha, as luzes apagadas, já era tarde da noite minha família dormia feliz em seu leito quente no andar de cima me esperando para mais uma noite de amor fraterno, não... eu não queria isso mais, isso não me saciava, não me completava, não me preenchia.
Eu vós avisei senhores, basta alguns meros minutos, um lapso, uma atitude não pensada, qualquer coisa ínfima, para desconstruir tudo aquilo que você imaginou um dia ser sólido no caráter humano, eu sei... eu sei que sim, até mesmo você passara por estas crises de consciência, um dia ainda há de passar e quando este dia chegar lembre-se de mim, lembre-se de minha história.
Era uma noite quente e silenciosa no bairro feliz, peguei sobre a mesa da cozinha a faca longa e bem afiada que minha esposa tantas vezes utilizara para picotar enormes nacos de carne como se fossem meros pedaços de papéis. Subi as escadas, tomado no peito de uma desilusão maligna, de um vazio que mal me deixava respirar, de um ódio do mundo, de mim, de deus, do universo, ódio de tudo, cego por uma raiva que veio do âmago de minha alma, anestesiado de toda consciência que um dia julguei ter, deferi a primeira facada naquela pele branca e macia de criança e antes que os gritos em pânico de minha amada tentasse inutilmente trazer-me para realidade, deferi outra, e outra, e mais uma, foram minutos ou horas não saberei lhe dizer, minha alma se encontrava em torpor tão grande que quando cai em consciência estava sentado no chão frio e pegajoso de sangue, fitado por dois pares de olhos sem vida abraçados e ensangüentados em minha frente.
A jaula da maldade havia sido aberta, o demônio da perversidade foi solto e as conseqüências de sua passagem pela minha vida estavam apenas começando. Quero que entenda, eu não podia ser preso, não podia manchar minha reputação, as eleições estavam por vir e eu seguramente iria vencê-las, o que eu fiz eu sei que foi imperdoável, mas eu sei que vocês entendem, eu sei que fariam o mesmo, eu precisava sumir com todas as pistas que pudessem me levar direto para o corredor da morte, compreendam o que eu fiz a seguir foi terrível eu sei, mas apesar de tudo não me arrependo, pois na morte encontrei um lugar confortável para minha alma atormentada.
Amanheceu e os primeiros raios de sol apareciam alegres no horizonte, na rua os vizinhos corriam animados para montar suas barracas e expor seus mais saborosos pratos para o dia da boa vizinhança, hoje era o dia que minha esposa tanto havia esperado, não podia deixar que nossa família simplesmente não participasse, devia isto a ela.
Como se nada houvesse acontecido, de banho tomado, trajando meu melhor terno italiano servi aos meus vizinhos o prato mais saboroso que eles já teriam provado na miserável vida sem sentido deles, e comeram, elogiaram, gracejaram, repetiram, mastigaram a carne macia e suave, conversavam de bocas abertas e felizes, chupavam a gordura que escorri por entre os dedos, estavam amando a minha receita especial.
Não me faltaram elogios aquele dia, todos queriam a receita do fabuloso assado mal passado, e eu apenas me limitava a sorri e responder:
“- É um segredo, mas o posso lhe dizer... é temperado com muito amor de família!”
O que aconteceu em seguida foi uma sucessão de fatos tão repentinos que minha mente hoje força-se a esquecer, lembro-me de pessoas desmaiando, outras choravam, algumas vomitavam, mas a maioria delas me massageavam com socos e ponta pés aos berros de “Monstro”, “Satã”, “Demônio”, não me lembro ao certo como escapei de tamanha selvageria contra minha pessoa, só lembro-me de uma dor profunda dos ossos quebrados em minha face e após isso só me lembro de estar sentado no banco dos réus meses depois.
Agora caminho sem esperanças pra morte, encontrarei por fim a paz que preencherá o vazio de minha alma, eu pagarei meus pecados e se existir perdão seja lá pra onde é que eu vá... Encontrarei minha amada filha e minha estimável esposa que com tanto carinho enterrei no fundo do quintal.

Vinícius Victor A. Barros.