No começo era escuro, uma
escuridão que me abraçava e preenchia até os ossos, depois veio o frio, que me
fazia tremer como se fossem pequenas agulhas espetando todos os meus poros. Não
conseguia enxergar nenhuma parte do meu corpo se é que eu ainda possuía um,
talvez fosse só minha alma vagando por uma imensidão negra sem fim.
Tentei gritar, não ouvi
minha própria voz, tentei correr, mas quando se corre no escuro chegamos sempre
ao mesmo lugar, estava me afogando em um mar calmo e traiçoeiro de silêncio.
Deixei-me acomodar, não
havia outra escolha, com o passar do tempo toda aquela falta de luz e vida me
fez sentir estranhamente aconchegado, acostumei-me com o frio ele já não doía
mais.
Quando, como que por milagre
um pontinho de luz lá no infinito negro brilhou e feriu meus olhos, tentei me
deslocar para mais perto, não saberia responder se a luz estava mais intensa ou
se eu realmente estava caminhando para mais perto dela, tão pouco quanto tempo
estava ali preso naquela gaiola de luzes apagadas.
Cheguei próximo o suficiente
para visualizar algo que parecia uma porta, uma velha e pesada porta antiga que
se destacava na escuridão pelo simples fato de existir. Hesitei por muito tempo
antes de tocá-la, tinha medo do que ou quem poderia sair dali, já estava
habituado a minha solidão escura, não queria correr o risco de sair dela ou
mesmo tê-la que dividir com alguém,
Esperei por minutos, ou
foram horas, talvez até dias, perde-se a noção do tempo quando o negro veste
sua vida. Por fim decidi abri-la, não a toquei, ela simplesmente se abriu como
se esperasse apenas por uma decisão minha, também não fez barulho algum e
dentro dela uma luz sufocante me atingiu, substituindo em segundos o preto por
um branco desnorteador.
Enquanto lutava pra me estabelecer,
a luz gradualmente diminuía e minhas pupilas iam se ajustando pouco a pouco as
imagens que se formavam ao meu redor.
Estava em um hospital, mais
precisamente em uma UTI onde aos fundos um aparelho bipava alto em um ritmo
enraivecido, naquela pequena sala um pelotão de senhores entraram a passos
largos trajando o habitual branco e ignorando minha presença foram direto ao
leito que se encontrava a poucos passos de mim. Eles berravam ordens e por
baixo daquelas máscaras cirúrgicas podia-se ler claramente o desespero em seus
olhos, trouxeram o desfibrilador, usaram-no uma, duas, três vezes, sem sucesso
algum, seja lá quem fosse aquela pessoa ele estava partindo e todos naquela
sala tinham consciência disso, talvez até o próprio doente.
Passado o choque da
situação, caminhei lentamente a fim de acompanhar mais de perto os esforços em
vão daquela equipe médica para ganhar a queda de braço com a morte.
O que vi me surpreendeu de
tal forma que fez com meu estômago girasse dentro de mim, aquela pessoa ali,
estirada e pálida na maca do hospital era, sabe-se lá como, eu mesmo! Por
debaixo de tubos e agulhas vi-se claramente, eu estava ali deitado, eu estava
ali fora do meu corpo, eu estava ali morrendo!
Mal tive tempo de ter alguma
reação, ou mesmo pensar em ter alguma, o chão sob meus pés se desfez e uma
fumaça branca e a última imagem que pude capturar foi a de um lamento
angustiado e de um bip contínuo vindo de uma máquina no canto da sala.
Fui então transportado para
outra cena, dessa vez um lindo campo verde, o céu azul contrastava com o vento
frio típico do mês de junho, era uma vista bonita, realmente muito agradável,
caminhei por algum tempo até me deparar ao longe com um aglomerado de pessoas.
Todas trajando preto, algumas segurando guarda-sóis e um silêncio sepulcral,
ouvia-se os pássaros rasgando o céu e a copa das árvores chacoalhando ao longe
com o impacto do vento, ouvia-se também o som abafado de pás ficando a terra
fofa. Caminhei para mais perto, ciente de estar em uma alucinação estranha e
atento a todos os detalhes que meus olhos e ouvidos pudessem captar, ninguém
sentiu ou notou minha presença novamente, mas de qualquer forma me esgueirei
por trás de alguns arbustos altos e de lá reparei nas pessoas que ali estavam
presentes.
Para meu espanto reconheci
todas, no canto em um choro silencioso meu irmão mais velho agarrava-se a mão
de minha irmã mais nova, que parecia assustada com toda a situação, um pouco
mais a frente meu pai vestido com sua habitual jaqueta de couro preto parecia ter
envelhecido anos e olheiras profundas fincavam em sua face, reconheci amigos,
primos, ex-namoradas, vi minha mãe a única que chorava sonoramente desesperada,
vi pessoas rindo em um canto, outras digitando algo discretamente no celular,
algumas com cara de desgosto de quem foi obrigado a se levantar cedo em uma
manhã de um belo dia ensolarado.
Aproximei-me, entendi a
situação, mesmo que ainda não tivesse consciência dela, ou não quisesse ter, já
não me importava mais se alguém pudesse me ver, só queria estar ali e ver o que
provavelmente seria o meu sepultamento, queria pode dar um abraço na minha mãe
que de fato era a única que parecia realmente se importar com toda aquela
situação, queria poder cumprimentar alguns amigos que há muito tempo eu não via
“Hey cara, você esperou acontecer alguma coisa pra vir me ver né?”, e perguntar
a algumas outras que tanto me odiavam o porque da presença delas ali, queria
secar as lágrimas quentes que escorriam de alguns rostos e aconchegar algumas
almas no calor de um abraço, queria ter a chance de dizer: “Olha tá tudo bem,
eu tô legal, eu lamento é por vocês que tem que continuar.”, queria fazer tanta
coisa mas quando a última pá de terra foi assentada e a última rosa jogada, a
imagem voltou a se turvar.
Agora eu estava em um bar
vazio, no fundo um blues qualquer arranhava em uma juicebox antiga, e o cheiro
de café preenchia todos os cantos do botequim, lá fora a chuva cai sem piedade
e a mesa ao meu lado estavam sentados alguns rostos familiares.
Pareciam um pouco mais velhos
do que de costume, em seus dedos cigarros e uma quantidade infindável de copos
e garrafas de cerveja vazias sob a mesa, reconheci um amigo do ensino médio
ostentando uma barba engraçada, ao lado sua namorada que ao contrario das
minhas lembranças dessa vez não carregava um sorriso, a sua frente mais dois
conhecidos, uma amiga que mesmo em vida não nos víamos muito mas sempre
carreguei por ela uma consideração maior do que provavelmente ela um dia já
tenha carregado por mim, e ao seu lado a minha eterna paixão de tempos de adolescência,
hoje ainda mais bela do que um dia eu pudesse imaginar que se tornaria, vê-la
me deixou triste, estava consciente que não existia mais e que muito
provavelmente ela também sabia disso mesmo que não se lembrasse, fiquei me perguntando
se algum deles ainda se lembravam de mim, se preservavam os bons momentos que
tivemos juntos, se as fotografias que tiramos não estariam agora desbotadas ou
jogadas em uma gaveta qualquer, e ela? Será que ela se lembrava de ainda de
mim? Dos dias legais que nos passamos juntos no parque ou das madrugadas
depressivas ao som de nossas bandas preferidas, será que ela se lembrava?
Como se ela pudesse ouvir os
meus questionamentos internos levantou-se e parou a simplesmente alguns centímetros
de distancia de minha boca, ela esta me vendo? Seria possível?
O seu perfume não mudara em
nada, aquele cheiro bom que vinha dos cabelos fogo e sempre impregnava minhas
roupas de uma forma indescritivelmente fantástica, seja lá o que tenha
acontecido comigo ou quanto tempo tenha se passado desde então, poder sentir
aquele cheiro me tirou do desassossego pela primeira vez e fez com que eu me
senti-se vivo por alguns instantes enquanto aqueles olhos profundos e
misteriosos atravessavam os meus.
“Hey linda, podemos ir
embora?”, girei sobre meus calcanhares e vi que ela na verdade olhava por
dentro de mim para um rapaz alto e barbudo que a esperava perto do balcão do
bar, ela abriu o sorriso, não o sorriso normal, mas aquele sorriso que ela me
dava quando sem querer a gente se encontrava em qualquer lugar, e como se eu
fosse fumaça atravessou-me a passos rápidos e se atirou nos braços do rapaz
bonito com uma felicidade que eu há muito tempo não via.
“Sinto muito por você sentir
tão pouco!”, berrei em vão, ela não ouvira, eles não ouviram, ninguém jamais me
ouviu um dia.
Sufocado pela cena abri a
porta do bar e entrei na chuva, caminhei por algum tempo na escuridão da noite
enquanto a chuva passava direto pelo meu corpo e se estatelava no chão,
caminhei por horas em uma mesma estrada abandonada e triste, até encontrar no
meio da rua a porta, a mesma porta velha e maldita que me levou para esse
turbilhão de cenas ruins, sem pestanejar girei a maçaneta e lá dentro vi minha
escuridão e nunca ela me soou tão acolhedora, olhei para trás lá no fundo atrás
de toda a chuva, as luzes do pequeno barzinho ainda acesas e na vitrola uma
música que eu conhecia muito bem “You... soft and only, you... lost and lonely,
you... strange as angels!”, entrei e fechei a porta de uma vez por todas.
De um sonho, ou um pesadelo da noite passada por Vinícius Victor A. Barros