segunda-feira, 10 de junho de 2013

No que dia em que morri.



No começo era escuro, uma escuridão que me abraçava e preenchia até os ossos, depois veio o frio, que me fazia tremer como se fossem pequenas agulhas espetando todos os meus poros. Não conseguia enxergar nenhuma parte do meu corpo se é que eu ainda possuía um, talvez fosse só minha alma vagando por uma imensidão negra sem fim.
Tentei gritar, não ouvi minha própria voz, tentei correr, mas quando se corre no escuro chegamos sempre ao mesmo lugar, estava me afogando em um mar calmo e traiçoeiro de silêncio.
Deixei-me acomodar, não havia outra escolha, com o passar do tempo toda aquela falta de luz e vida me fez sentir estranhamente aconchegado, acostumei-me com o frio ele já não doía mais.
Quando, como que por milagre um pontinho de luz lá no infinito negro brilhou e feriu meus olhos, tentei me deslocar para mais perto, não saberia responder se a luz estava mais intensa ou se eu realmente estava caminhando para mais perto dela, tão pouco quanto tempo estava ali preso naquela gaiola de luzes apagadas.
Cheguei próximo o suficiente para visualizar algo que parecia uma porta, uma velha e pesada porta antiga que se destacava na escuridão pelo simples fato de existir. Hesitei por muito tempo antes de tocá-la, tinha medo do que ou quem poderia sair dali, já estava habituado a minha solidão escura, não queria correr o risco de sair dela ou mesmo tê-la que dividir com alguém,
Esperei por minutos, ou foram horas, talvez até dias, perde-se a noção do tempo quando o negro veste sua vida. Por fim decidi abri-la, não a toquei, ela simplesmente se abriu como se esperasse apenas por uma decisão minha, também não fez barulho algum e dentro dela uma luz sufocante me atingiu, substituindo em segundos o preto por um branco desnorteador.
Enquanto lutava pra me estabelecer, a luz gradualmente diminuía e minhas pupilas iam se ajustando pouco a pouco as imagens que se formavam ao meu redor.
Estava em um hospital, mais precisamente em uma UTI onde aos fundos um aparelho bipava alto em um ritmo enraivecido, naquela pequena sala um pelotão de senhores entraram a passos largos trajando o habitual branco e ignorando minha presença foram direto ao leito que se encontrava a poucos passos de mim. Eles berravam ordens e por baixo daquelas máscaras cirúrgicas podia-se ler claramente o desespero em seus olhos, trouxeram o desfibrilador, usaram-no uma, duas, três vezes, sem sucesso algum, seja lá quem fosse aquela pessoa ele estava partindo e todos naquela sala tinham consciência disso, talvez até o próprio doente.
Passado o choque da situação, caminhei lentamente a fim de acompanhar mais de perto os esforços em vão daquela equipe médica para ganhar a queda de braço com a morte.
O que vi me surpreendeu de tal forma que fez com meu estômago girasse dentro de mim, aquela pessoa ali, estirada e pálida na maca do hospital era, sabe-se lá como, eu mesmo! Por debaixo de tubos e agulhas vi-se claramente, eu estava ali deitado, eu estava ali fora do meu corpo, eu estava ali morrendo!
Mal tive tempo de ter alguma reação, ou mesmo pensar em ter alguma, o chão sob meus pés se desfez e uma fumaça branca e a última imagem que pude capturar foi a de um lamento angustiado e de um bip contínuo vindo de uma máquina no canto da sala.
Fui então transportado para outra cena, dessa vez um lindo campo verde, o céu azul contrastava com o vento frio típico do mês de junho, era uma vista bonita, realmente muito agradável, caminhei por algum tempo até me deparar ao longe com um aglomerado de pessoas. Todas trajando preto, algumas segurando guarda-sóis e um silêncio sepulcral, ouvia-se os pássaros rasgando o céu e a copa das árvores chacoalhando ao longe com o impacto do vento, ouvia-se também o som abafado de pás ficando a terra fofa. Caminhei para mais perto, ciente de estar em uma alucinação estranha e atento a todos os detalhes que meus olhos e ouvidos pudessem captar, ninguém sentiu ou notou minha presença novamente, mas de qualquer forma me esgueirei por trás de alguns arbustos altos e de lá reparei nas pessoas que ali estavam presentes.
Para meu espanto reconheci todas, no canto em um choro silencioso meu irmão mais velho agarrava-se a mão de minha irmã mais nova, que parecia assustada com toda a situação, um pouco mais a frente meu pai vestido com sua habitual jaqueta de couro preto parecia ter envelhecido anos e olheiras profundas fincavam em sua face, reconheci amigos, primos, ex-namoradas, vi minha mãe a única que chorava sonoramente desesperada, vi pessoas rindo em um canto, outras digitando algo discretamente no celular, algumas com cara de desgosto de quem foi obrigado a se levantar cedo em uma manhã de um belo dia ensolarado.
Aproximei-me, entendi a situação, mesmo que ainda não tivesse consciência dela, ou não quisesse ter, já não me importava mais se alguém pudesse me ver, só queria estar ali e ver o que provavelmente seria o meu sepultamento, queria pode dar um abraço na minha mãe que de fato era a única que parecia realmente se importar com toda aquela situação, queria poder cumprimentar alguns amigos que há muito tempo eu não via “Hey cara, você esperou acontecer alguma coisa pra vir me ver né?”, e perguntar a algumas outras que tanto me odiavam o porque da presença delas ali, queria secar as lágrimas quentes que escorriam de alguns rostos e aconchegar algumas almas no calor de um abraço, queria ter a chance de dizer: “Olha tá tudo bem, eu tô legal, eu lamento é por vocês que tem que continuar.”, queria fazer tanta coisa mas quando a última pá de terra foi assentada e a última rosa jogada, a imagem voltou a se turvar.
Agora eu estava em um bar vazio, no fundo um blues qualquer arranhava em uma juicebox antiga, e o cheiro de café preenchia todos os cantos do botequim, lá fora a chuva cai sem piedade e a mesa ao meu lado estavam sentados alguns rostos familiares.
Pareciam um pouco mais velhos do que de costume, em seus dedos cigarros e uma quantidade infindável de copos e garrafas de cerveja vazias sob a mesa, reconheci um amigo do ensino médio ostentando uma barba engraçada, ao lado sua namorada que ao contrario das minhas lembranças dessa vez não carregava um sorriso, a sua frente mais dois conhecidos, uma amiga que mesmo em vida não nos víamos muito mas sempre carreguei por ela uma consideração maior do que provavelmente ela um dia já tenha carregado por mim, e ao seu lado a minha eterna paixão de tempos de adolescência, hoje ainda mais bela do que um dia eu pudesse imaginar que se tornaria, vê-la me deixou triste, estava consciente que não existia mais e que muito provavelmente ela também sabia disso mesmo que não se lembrasse, fiquei me perguntando se algum deles ainda se lembravam de mim, se preservavam os bons momentos que tivemos juntos, se as fotografias que tiramos não estariam agora desbotadas ou jogadas em uma gaveta qualquer, e ela? Será que ela se lembrava de ainda de mim? Dos dias legais que nos passamos juntos no parque ou das madrugadas depressivas ao som de nossas bandas preferidas, será que ela se lembrava?
Como se ela pudesse ouvir os meus questionamentos internos levantou-se e parou a simplesmente alguns centímetros de distancia de minha boca, ela esta me vendo? Seria possível?
O seu perfume não mudara em nada, aquele cheiro bom que vinha dos cabelos fogo e sempre impregnava minhas roupas de uma forma indescritivelmente fantástica, seja lá o que tenha acontecido comigo ou quanto tempo tenha se passado desde então, poder sentir aquele cheiro me tirou do desassossego pela primeira vez e fez com que eu me senti-se vivo por alguns instantes enquanto aqueles olhos profundos e misteriosos atravessavam os meus.
“Hey linda, podemos ir embora?”, girei sobre meus calcanhares e vi que ela na verdade olhava por dentro de mim para um rapaz alto e barbudo que a esperava perto do balcão do bar, ela abriu o sorriso, não o sorriso normal, mas aquele sorriso que ela me dava quando sem querer a gente se encontrava em qualquer lugar, e como se eu fosse fumaça atravessou-me a passos rápidos e se atirou nos braços do rapaz bonito com uma felicidade que eu há muito tempo não via.
“Sinto muito por você sentir tão pouco!”, berrei em vão, ela não ouvira, eles não ouviram, ninguém jamais me ouviu um dia.
Sufocado pela cena abri a porta do bar e entrei na chuva, caminhei por algum tempo na escuridão da noite enquanto a chuva passava direto pelo meu corpo e se estatelava no chão, caminhei por horas em uma mesma estrada abandonada e triste, até encontrar no meio da rua a porta, a mesma porta velha e maldita que me levou para esse turbilhão de cenas ruins, sem pestanejar girei a maçaneta e lá dentro vi minha escuridão e nunca ela me soou tão acolhedora, olhei para trás lá no fundo atrás de toda a chuva, as luzes do pequeno barzinho ainda acesas e na vitrola uma música que eu conhecia muito bem “You... soft and only, you... lost and lonely, you... strange as angels!”, entrei e fechei a porta de uma vez por todas.

De um sonho, ou um pesadelo da noite passada por Vinícius Victor A. Barros

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