domingo, 24 de janeiro de 2016

Dom Quixote de La Mancha sou eu!



 Albert Dubout (1938)

Dom Quixote é um clássico da literatura, e de tantas formas que existem para definir esse cânone, a minha explicação favorita é de que um livro se torna clássico quando mesmo sem lê-lo você sabe toda a história que ali acontece. E talvez tenha sido por isso que eu demorei tanto tempo para ler essa obra maravilhosa de Miguel de Cervantes, até que um belo dia em uma matéria sobre Teoria da Narrativa, com um dos professores mais rígidos da faculdade, eu fui "obrigado" a ler todas as 650 páginas do primeiro volume. Gastei 75$ em uma versão de luxo linda da companhia da letras e estava disposto a fazer jus a esse dinheiro, acontece na maioria dos casos quando você é obrigado a se sustentar na faculdade.
A história como suponho que vocês eventuais leitores, que por algum acaso do destino caem por aqui, saibam, trata-se de um velho fidalgo que após ler tantos romances de cavalaria enlouqueceu ao ponto de se armar com uma velha lança, um velho escudo e um peitoral enferrujado e trotar pelos cantos do mundo em busca de aventuras e de sua amada Dulcineia del Toboso . Não entrarei nos detalhes de composição narrativa pois Borges (meu deus leiam Borges, esse homem é maravilhoso) já fez isso em Pierre Menard.
Enfim, a história se desdobra de uma maneira cômica para muitos, já que um velho enlouquecido que desafia moinhos de vento imaginando que estes são dragões, de fato não pode ser muito levado a sério. Mas comigo foi diferente, como sempre é, além das anedotas claras do velho cavaleiro eu enxerguei algo muito pessoal, a busca do seu amor por uma Dulcineia del Toboso que nunca existiu, a sua amizade e lealdade com Sancho Pança, a sua crença na loucura que lhe dominava, me soava como algo diferente de tudo que eu já podia ter lido, me parecia familiar.
No fim dos capítulos que devorei em dias, não conseguia tirar da cabeça que por mais que eu tentasse desvincular a ideia, o engenhoso cavaleiro da triste figura era MUITO parecido comigo. Chega, e na verdade é, cômico isso, mas o fato não podia ser ignorado, eu era um Dom Quixote que usava tênis sujos e um jeans surrado no lugar das manoplas de prata. 
Dom Quixote era movido pela paixão a sua loucura, acreditava piamente que seus delírios eram verdadeiros, que moinhos de ventos eram de fato dragões, que a caravana do padre era de salteadores, assim como eu acreditei por vezes que meus pequenos problemas eram ferozes dragões cuspidores de fogo e devoradores de alma, assim como acreditei que amigos eram padres em uma caravana e descobri que eram salteadores que só queriam sugar o máximo da nossa relação, a minha loucura era tão lúcida quanto a de Dom Quixote. 
O velho Dom Quixote sentia-se sempre cansado devido a idade, e nem por isso fugia as batalhas, inventadas por ele é verdade, assim como nunca temi por mais cansado que minha alma estivesse a enfrentar nada, no fim tanto eu, quanto o cavaleiro nos encontrávamos na mesma situação com feridas abertas, ossos quebrados, orgulho ferido, prostrados em um lugar qualquer a espera de uma longa e demorada recuperação, esperando que feridas se curassem, que ossos se colassem, que a dor passasse para no final subirmos no lombo do cavalo e trotar pelo mundo em busca de mais erros, mais enganos e mais feridas a serem abertas em nossa pele, nossos músculos, nossas almas. 
Dulcineia del Toboso era a amada de Dom Quixote, idealizada e retirada de dentro de vários romances de cavalaria, assim como eu idealizara romances românticos arrancados de versos de Vinicius de Moraes, de músicas do Renato Godá e do Los Hermanos. Quantas vezes nestas minhas andanças pelo mundo eu também não julguei ter conhecido a minha Dulcineia, quantas vezes eu não a idealizei melhor que ela era, assim como Dom Quixote amador inveterado, me recusava a acreditar que por mais que ela pudesse ter sido o amor de minha vida, para ela eu fui apenas mais um louco despido de armaduras que lerá romances demais.
Recusei por vezes a febre da loucura, tentei enxergar o mundo da forma como ele era, tentei não ser Dom Quixote, tentei abandonar Dulcineias e moinhos de vento, mas a realidade me assusta mais que meu louco mundo idealizado. A verdade de relações efêmeras que se resumem ao corpo, que se resumem a interesses ou que acabam sem motivo, não eram as que eu queria enxergar, por tanto eu montava meu cavalo, minha armadura gasta e enxergava o amor onde não tinha, por mais que isto por vezes me levasse novamente a feridas incuráveis, expostas que sangram e que nunca cicatrizem, me recuso a ver o mundo fora dessa loucura, fora do amor de verdade. Se continuo a quebrar lanças contra moinhos é porque assim acredito que deva ser, é porque assim acredito que o mundo, ao menos o meu, deveria ser, se procuro por Dulcineias que só me machucam, só me derrubam do cavalo, só me enganam, é porque as olhei com um olhar de Dom Quixote, um olhar romântico enlouquecido é verdade, distorcido também, mas é assim que eu vejo o mundo é nele que eu quero habitar.
Quero habitar em relações verdadeiras, relações sinceras, romances românticos sim, quero colher a flor dos campos verdes e entregar a minha donzela seja ela quem for, mesmo que ela a amasse e a jogue fora, quero ter ao meu lado os mais sinceros Sanchos Panças que um cavaleiro pode ter, quero poder lutar contra o vento e imaginar o que eu quiser, quero a loucura de relações que já não existem mais. 
Seria eu o louco? seria eu que os romances enfraqueceram os miolos? ou seria o mundo que está cada vez mais doente e dissolvido? 
Talvez eu morra em uma dessas batalhas contra moinhos de ventos por Dulcineias que não existem, talvez eu me machuque tanto que eu não possa voltar mais, e isso é bem provável, mas jamais deixarei de ser Dom Quixote, jamais deixarei de acreditar na minha loucura, na minha psicopatia, quem sabe em uma dessas batalhas que travamos na vida não encontro a verdadeira Dulcineia, quem sabe a loucura dela não é a mesma que a minha, quem sabe não podemos viver juntos nossa loucura, uma loucura a dois.  
Enquanto isto vago pelo mundo, o cavaleiro da triste figura, com seu rocinante magrelo, com uma ferida em cada parte do corpo, com a alma cansada, se arremetendo contra paredes de concreto frio, mas um dia eu hei de encontrar algo para a vida inteira, pois assim como Dom Quixote eu acredito na minha loucura, seja por amor as causas perdidas, ou seja porque meu nome deve ser mesmo otário, muito prazer.

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